Mário Ferreira dos Santos sobre a realidade do mundo exterior

O filósofo Mário Ferreira dos Santos em sua obra “Filosofias da Afirmação e da Negação” tem algo a dizer sobre o grupo de pessoas que acreditam, e defendem com unhas e dentes, que o mundo que habitamos e todos os seus entes não passam de coisas desprovidas de realidade, não passam de uma projeção imaginativa daquele que experimenta tudo – posição conhecida como solipsismo, mas que possui variantes menos dogmáticas em várias correntes de pensamento.

O livro é escrito retratando um exercício dialético entre os personagens, sendo Pitágoras a representação fiel do filósofo por excelência. Sendo assim, as visões do personagens são basicamente as visões do autor.  

No trecho a seguir, Mário comenta o absurdo do solipsismo e como ele vai contra nossa experiência mais básica:

“– Pitágoras, tudo quanto você disse até aqui não provou ainda que existe um mundo exterior ao homem – interveio Josias, num desafio.

– Se os meus argumentos não satisfizeram, depois de ter mostrado que há uma ordem completamente diferente entre o mundo da imaginação e o mundo da realidade exterior; depois que mostrei que há grande diferença entre um copo de d’água sonhado e um copo d’água real, que há diferença entre a dor sentida, a experiência vivida e a dor imaginada e a experiência imaginada; depois que se verificou que o sonho apenas nos dá convicções, sem certezas bem fundadas, enquanto o mundo da realidade as dá; depois que se verificou haver no mundo exterior uma ordem que liga os fatos uns aos outros, que nos explica o porquê das coisas que obedecem a ordens claras, que perscrutamos, achamos, e que podemos nele exercitar a nossa vontade dentro de uma ordem rigorosa; depois de tudo isso, se há ainda alguém que, tendo tudo isso à mão, aos olhos, aos sentidos e à inteligência, ainda duvida, ainda quer negar o mundo exterior, ao qual, contudo, se apega e atua consciente de sua realidade e não da realidade do mundo do sonho, que sabe que não é verdadeira, e que não trocaria ser forte, saudável, rico no mundo exterior por ser forte saudável e rico no mundo do sonho, e que nem julgaria a mesma coisa, depois de tudo isso, que posso mais dizer? Teria de reexaminar tudo, ponto por ponto, para finalmente mostrar que a posição que nega essa existência não tem a seu favor nenhum argumento sólido, que é refutada por todas absurdidades que daí decorrem, porque se vê forçada a tornar-se solipsista, e a afirmar que a única realidade é a da própria pessoa que pensa assim. Esta ainda se vê forçada a negar a realidade de suas mãos, de seus braços, de seu corpo, enquanto, na vida prática, não os nega, defende-os, luta por eles, e procede com a maior fé na sua realidade, a ponto de afirmar que a única realidade é ela só, porque se admitir que eu ou o Artur somos seres reais fora da sua mente, terá de admitir um mundo exterior, e ficando sozinha em si mesma, terá de admitir que tudo que se dá no mundo não é realização de si mesmo porque não é capaz de controla-lo e cria-lo ao seu sabor, mas, ao contrário, se vê constrangido a viver e a proceder sob o domínio de uma coisa que cria, mas não sabe como cria, e que não dirige, a qual, ao contrário, o dirige, o domina; que chega, enfim, a tais absurdos de, declarando-se ante a sua própria existência como um ser contingente, ter que afirmar que é o princípio de todas as coisas, sem ter razão de o ser, sem encontrar nenhuma razão sequer de ser; que causou a si mesmo, não existindo antes de existir, e passando a existir por si mesmo, numa mágica sem razão, sem justificação, mas que ao mesmo tempo que é o criador de todo esse mundo, é preciso apelar a um misterioso, que chama inconsciente e que o cria, negando já a si mesmo o poder criador mas a uma parte de si mesmo, que é outro que ele que atua, sem uma razão, sem um porquê, criando um mundo que não é verdadeiro, mas falso; e cujo mundo falso ele coloca em sua imaginação, e depois afirma que ele é o único verdadeiro, tendo já tirado desse mundo verdadeiro o inconsciente, que é outro, e que passa a ser mundo exterior ao mundo da sua imaginação, e mundo exterior ao mundo de seu eu, enfim que fica pulando de um absurdo para outro, sem apresentar nexo nenhum em nada do que diz e, finalmente, do alto da sua tolice (perdoem-me, mas para coisas feias palavras feias), do alto da sua tolice, nega a validez de outra concepção, que é cristalina, que é lógica, que é regular, que corresponde à regularidade dos fatos que se sucedem, e que explica melhor o mundo da imaginação e do sonho, fundado no mundo da realidade exterior; em suma: esse alguém não merece mais resposta. Que fique com sua opinião, mera opinião, sem qualquer base de certeza, senão uma convicção que é um apelo à loucura. Um debate aqui já se exclui do campo do bom senso, e penetra no campo das coisas banais e ilógicas, das conversas de alucinados e dementes.

Essa concepção é um rosário de tolices, de absurdos e de contradições. É só o que me cabe dizer. “

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